quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O lado errado do mal...

"- Feitiçaria e Santidade, são estas as únicas realidades. Cada uma delas é um êxtase, uma fuga à vida de todos os dias.
- Sim - continuou ele, - a magia justifica-se com os seus seguidores. Penso que há muitos que comem côdeas secas e bebem água, com uma alegria infinitamente mais intensa do que a que faz parte da experiência de um epicurista "pragmático".
- Está a falar de santos?
- Sim, e também dos pecadores. Penso que o senhor possa estar a a cair nesse erro, bastante generalizado, de reduzir o mundo espiritual ao bem supremo. Porém, o supremo mal também faz parte, necessariamente, desse mesmo mundo. O homem meramente carnal e sensual tem tanta dificuldade em ser um grande pecador como em tornar-se um grande santo. Para a maioria, um número de criaturas confusas, tratar-se-á de uma questão irrelevante. Arrastamo-nos pela lama sem nos darmos conta do significado nem do verdadeiro sentido das coisas, e, consequentemente, a nossa maldade e a nossa bondade são ambas assuntos secundários, sem importância.
- E então, acha que um grande pecador será um ascético, tal como um grande santo?
- As grandes pessoas, de todos os tipos, renunciam às cópias imperfeitas e preferem a perfeição dos originais. Não duvido que os santos mais altamente colocados nunca tenham praticado uma "boa acção" (se usarmos estas palavras no sentido corrente). E, por outro lado, houve quem tivesse atingido as verdadeiras profundidades do pecado, nunca tendo, durante a vida inteira, praticado uma "má acção".
- Se quer que lhe diga, custa-me muito aceitá-lo. Os seus paradoxos são demasiado monstruosos. Então um homem pode ser um grande pecador e, no entanto, nunca ter cometido um pecado! Como é isso?
(...)
- A sua surpresa ante a minha observação deve-se ao facto de não se ter dado conta do que é afinal o pecado. Ah, sem dúvida, existe uma espécie de de ligação entre o Pecado (com letra grande), e as acções que, regra geral, designamos de pecadoras: como o assassínio, o roubo, o adultério, e assim por diante. Mas trata-se em grande parte, da mesma ligação que existe entre o ABC e a literatura mais refinada. Todavia, acredito que as falsas concepções, que são em tudo universais, resultam, em grande parte, do facto de encararmos a questão através de um filtro de natureza social. Pensamos que um homem que nos faz mal, a "nós" e aos nossos semelhantes, deverá ser alguém cheio de maldade. O que é verdade, de um ponto de vista social...Mas será que não se dá conta de o Mal, na sua essência, tem algo de solipsista, uma paixão de alma solitária e individual? Na verdade, o assassino comum, na sua qualidade de assassino, não é de modo nenhum um pecador, no verdadeiro sentido da palavra. É tão só um animal selvagem do qual nos teremos que desenvencilhar para protegermos os nossos pescoços da sua faca. Colocá-lo-ia antes na categoria dos tigres e não na dos pecadores. O assassino mata, baseando-se, não nas qualidades positivas mas antes nas negativas, falta-lhe qualquer coisa que os que não são assassinos possuem. O Mal, como é óbvio, é totalmente positivo, apenas se encontra no lado errado. Pode acreditar que o pecado, na sua verdadeira acepção, é muito raro, e é provável que tenha havido muito menos pecadores do que santos.(...)
- Sabe - disse ele - que sinto um grande interesse por si? Acredita, então, que nós não compreendemos a verdadeira natureza do Mal?
- Pois, creio que não. Ou lhe damos demasiada importância ou o substimamos. Damos tanta importância ao "pecado" de meterem a mão nos nossos bolsos (e nas nossas mulheres), que praticamente já nos esquecemos da hediondez do verdadeiro pecado.
- E o que é então o pecado?
- Creio que deva responder-lhe com uma outra pergunta. Como se sentiria, diga-me a verdade, se o seu gato ou o seu cão começassem a falar e a discutir consigo com um tom de voz humano? Ficaria horrorizado, tenho a certeza. E se as rosas do seu jardim cantassem uma estranha melodia, de certo iria enlouquecer...Suponha que as pedras da calçada começavam a inchar e a crescer a olhos vistos... E se o seixo, em que reparou à noite, tivesse desabrochado rebentos de pedra pela manhã? Bem, estes exemplos poder-lhe-ão dar uma noção do que é realmente o pecado." (...)

in, "O Grande Deus Pã" by Arthur Machen

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